A verdade é que me apeteceu. E depois de me apetecer, fiz. Sempre acompanhada da mesma questão, sempre com a mesma dúvida, sempre a perguntar-me porquê?, e logo uma coisa qualquer, por detrás da cortina transparente da janela, e porque não? Seria uma voz, ainda que não se ouvisse? Não. Era, muito provavelmente, só uma coisa qualquer que não sabia o que dizia. Ainda assim, segui-a. Se é para ficar, para alimentá-lo todos os dias na tentativa de crer que algo válido, se é para o encher com reflexões que valham a pena, ainda não decidi. A verdade é que me apeteceu e fiz. Não sei porquê, nem porque não, mas curiosamente esse facto não é inquietante e, arrisco confessar, confere-me até uma sórdida liberdade. Veremos...
Por dulce surgy

Agora

No processo em que as coisas se renovam, por vezes, braços e dedos ávidos, fluidos como água, engolem o corpo. Puxam para trás, recuam-nos. Fazem-nos, não sei porquê, voltar, como se tivéssemos esquecido qualquer coisa ao sair de casa, uma luz acesa, um fio de água numa torneira, mas não, regressamos e tudo afinal igual. Pergunto-me porque voltamos atrás e não há resposta, tudo na mesma, e contudo uma perna a querer fechar a porta e a outra do lado de cá a inventar uma torradeira que se deixou ligada, a alinhar uma almofada fora de sítio, e nisto anos e anos perdidos, sem qualquer significado, todas as coisas desses anos apagadas e nós, pasmados, Aqui outra vez?.
No entanto, há dias, momentos, segundos, em que o renascimento não dói. Já não dedos esquálidos a assustar no virar dos dias. Apenas mãos que se estendem, que confortam, que nos mostram, sem que pedíssemos, o caminho. Coisas e coisas que se movem devagar, vozes que nos chamam baixinho. E nós, tacteando no vazio e ainda assim confiantes, avançamos.

Golijov, a testemunha


Também eu quero, apesar das explosões, cantar.
Também eu espero, depois da queda, um levantar.

Para sempre

Transportava a vida toda no regaço e tropecei numa ribeira de águas revoltas que me arrastaram e conforme me arrastaram a vida espalhada pelo chão, coisas soltas rebolando e eu, de joelhos numa aflição a tentar juntá-las num monte para as guardar, não nos bolsos desta vez, num baú de sótão, daqueles que resistem aos anos e ao esquecimento. Por isso, eu agora sentada no chão mirando despojos, a inquietar ao acaso o entulho, isto guardo, isto não guardo, a compor a arca das melhores relíquias, a fazer da minha lembrança uma coisa boa. Retiro do chão, do meio desses cacos avulsos, o embalo da brisa do mar, um abraço forte, a tua mão entrelaçada na minha. E é isso que guardo. Tu um dia a encontrares tal velharia, a revirares de um lado e doutro, a murmurares sem que te lembres, que coisa esta, mas essas coisas lá, aguardando a tua volta, arrecadadas dentro de um baú velho e também dentro do meu coração.

Sputnik, meu amor

"No fundo não passávamos de dois solitários pedaços de metal, traçando cada um a sua órbita. Ao longe, parecem belos como estrelas cadentes, mas, na realidade, cada um de nós navega sozinho sem destino certo, prisioneiro na sua própria cápsula. Caso as órbitas desses dois satélites se cruzassem poderíamos então encontrar-nos. Talvez até abríssemos os nossos corações, mas apenas por um brevíssimo instante. No momento seguinte, voltaríamos a mergulhar na mais absoluta solidão. Até começarmos a arder e ficarmos reduzidos a nada."

Fascina-me conhecer todos os lados de uma dada questão




















Ainda que alguns deles pareçam absurdos...

Oh dôce luz! oh lua!
Que luz suave a tua,
E como se insinua
Em alma que fluctua
De engano em desengano!
Oh creação sublime!
A tua luz reprime
As tentações do crime,
E á dôr que nos opprime
Abres-lhe um oceano!

É esse céo um lago,
E tu, reflexo vago
D'um sol, como o que eu trago
No seio, onde o afago,
No seio, onde o aperto?
Oh luz orphã do dia!
Que mystica harmonia
Ha n'essa luz tão fria,
E a sombra que me guia
N'este areal deserto!

João de Deus, Melancolia

Líricos e épicos

Nesse grande A insustentável leveza do ser, Milan Kundera divide os homens, - como direi? - mulherengos em duas categorias; os líricos e os épicos.
Os primeiros procuram nas mulheres um ideal, procuram o reflexo do seu sonho de mulher, um arquétipo subjectivo e sempre igual. Acabam por desiludir-se de todas as vezes porque, obviamente, o ideal nunca se encontra.
Os segundos procuram no feminino aquele "milionésimo de diferente", aquilo que cada mulher tem de inimaginável.
Enquanto os líricos conseguem a compaixão e o perdão facultados pela desculpa melódramática da sua desilusão, os épicos são legendados de escadalosos pois, uma vez que nenhum ideal é projectado nas mulheres, a desilusão não os afecta e portanto nada encerram de comovente aos olhos das mulheres.
Isto diz ele, eu tenho cá p'ra mim que a ironia é soberba, mas não dá para levar a sério.
Mas quem já não conheceu uns quantos (e umas quantas) assim mesmo?

Eu, ainda assim, luz

Há já algum tempo que eu apenas uma nesga de luz aflita pela janela.

Uma mão que se ilumina num pássaro mesmo ali e que logo voa devido à falta do senso. Aqui os cães ladram por uma falta de tudo e nas ruas, parece-me, outras cores se mudam para mim, os rosas nadas, os vermelhos pretos. Tu o pássaro e eu, tentando, querendo alcançar mais longe, a mão.

Há já algum tempo que eu apenas uma nesga mas ainda assim, luz.

Um ténue fiapo alumiando aquela vontade que se quer falar. E mesmo que esvoaces mais,do medo de te tocar, essa vasta vontade toda aqui, os azuis, os vermelhos todos eu, um pé que se afinca na foz, no rumo, e um corpo que se levanta resoluto.

Os top's

Hoje no livros e afins podemos encontrar a referência a este artigo do Expresso.
Aproveito na integra as palavras de Alessandro Martins:
Oooooutra lista. Esta feita pela Newsweek Todo o mundo adora ir riscando os que já leu, os que não gosta, aqueles de que discorda… enfim. Todo o mundo ama, todo o mundo odeia “listas de melhores livros”. Eu sugiro que façam uma lista das 100 melhores listas de 100 melhores livros do mundo, tirem um denominador comum e tentem chegar a algo mais definitivo. Ah… isso sem falar que, normalmente, quem faz as listas de maior abrangência esquece que há autores em outras línguas que não o inglês, o alemão e o francês. Enfim, pra encerrar mesmo… nunca leve uma lista tão a sério.
Quanto à sua sugestão, claro que não reuni 100, mas visitei algumas e quem tiver curiosidade pode consultar esta (elaborada por 100 escritores de 54 países), esta (publicada num jornal brasileiro) ou esta (pela revista Time). Não é preciso muito esforço para perceber qual a mais abrangente e qual a mais autista...

De qualquer forma, há os que parecem obrigatórios (e que eu incluiria também numa lista minha), "O som e a fúria" de Faulkner ou "Mrs. Dalloway" de Virginia Woolf e aqueles que ninguém percebe o que fazem ali (nem vou fazer referência). Engraçado também é notar que, enquanto para uns "D. Quixote" é o melhor livro de sempre, para outros nem sequer obtém o 100º lugar!

Talvez valha a pena dar uma vista de olhos se tivermos a certeza qual a nossa lista dos melhores, caso contrário podemos ficar baralhados...

O maior, o melhor... Ele

Ao fim de um mês de ter iniciado este espaço é altura de abertamente falar dele (Dele, não do espaço; para que não haja confusões). Porque há que assumir as coisas, porque é muito bom, porque fica a anos luz dos outros, porque consegue fazer diferente, porque não se pode dizer é parecido com, porque me dá arrepios costas acima, porque é inovador, porque se entranha, porque quero mais e mais. Por vezes, muitas vezes, volto atrás só para ter a certeza de que é mesmo assim, de que conseguiu mesmo escrever aquilo.
Espero ansiosamente por Outubro para poder ler o seu "Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?" e como acredito que ele é daqueles que faz birras, nem aceito como real a história de parar de editar. A ele o meu muito obrigado pelos puzzles maravilhosos que faz com apenas 23 peças.

"que vida, o que me espera antes que a aorta se desregule e rebente, concentrar-me na aorta que me engana
Trabalho como deve ser descança
conforme me enganaram na Polícia durante mais de 30 (trinta) anos
Informam-nos da Central que a promoção está quase
e enquanto está quase eu com medo das cobras nas figueiras bravas escoltado por agentes com metade da minha idade
(menos de metade da minha idade)
e de aortas saudáveis que se riem de mim mãe, repare nas expressões, tratam-me por
Senhor
e a espreitar do
Senhor
dedém deles
Esse palhaço velho"
in O meu nome é legião, António Lobo Antunes

Estou agora a pensar que talvez seja um sacrilégio roubar ao resto este pedaço, já que tudo, desde a primeira página à última, é um enorme poema onde as palavras parecem ter nascido ali, e postas assim à solta parecem membros amputados de um corpo maior.
Mas agora já está... o que posso fazer é sugerir que leiam tudo.

Dualidade universal ou ilusão?

"Atribuo a Zoroastro o facto de ter mostrado à humanidade não só a unicidade da divindade mas também a dualidade simultânea, que é uma condição necessária da verdadeira divindade. A Verdade não pode ser verdadeira sem a Mentira, e a Mentira não pode ser refutada sem a Verdade. Por consequência, cada vida humana é um campo de batalha entre as duas."
Isto, de facto, parece lógico. Mas tomemos em consideração o conceito de Maya que nos distingue entre a verdade conceptual e a precepcionada, aquilo que realmente é versus aquilo que pensamos que é. O objectivo e o subjectivo ou, se quisermos, a Verdade Real e a Verdade Ilusória. A dualidade de que fala Ciro em Criação, de Gore Vidal, só é considerada lógica porque assim construímos a nossa forma de ver o mundo, dividida em extremos, em oposições. Maya incita-nos a procurar a Realidade, a Verdade mais Elevada, a não nos deixarmos iludir com soluções fáceis. Mas essas não são necessariamente opostos da Realidade, fazem parte dela. Então, pergunto-me:
Não será o constante desejo de posicionar todas as coisas entre polos extremos, a suprema ilusão?
Não será o objectivo último, libertar-mo-nos dessa visão dualista do universo para que assim a vida de cada Homem deixe finalmente de ser um campo de batalha?

As palavras certas

Escolho-as, enfim, cuidadosamente
de modo sereno mas persistente;
dedos finos apalpando seguros,
rente à terra, deliciosos morangos
em fim de estação, vermelhos, maduros.

E uma após outra, bem alinhadas,
disponho-as (à medida que encontradas)
em perfeito carreiro militar,
em alvo papel mas com tinta preta,
para poder melhor verificar.

Leio e releio, atento no sentido
e congratulo-me com o tom decidido,
mas nisto hesito, paro acobardada;
-será que adianta falar de amor?-
E eis que me calo, não digo nada!

Isto da métrica e da rima ...bem sei. No entanto, dá um gozo danado e às vezes não resisto :)

Modificar

Mudar. Pensamentos, atitudes, posturas, visões. Mudar é alterar, variar. É transformar e como tal deveria ser nada perder, nada ganhar. Deveria ser, porque não é (pois não?). Mudar também é renascer, e logo implica um processo de morte. Requer que se corte, que se quebre algo. A maior parte das vezes o hábito. Coisas que se fazem e dizem e sentem mecanicamente, sem pensar, sem ponderar. Só porque sempre foi assim, só porque tem de ser. E o sempre foi assim tem muita força. Cola os nossos corpos lá bem atrás, donde queremos sair e é necessária persistência, determinação para conseguir avançar. Lembrar todos os dias por onde queremos ir e não ceder à tentação (fácil) de continuarmos por onde viemos até aqui.
Mudar, convenço-me a cada dia, é assim como vasculhar nos baús do sótão aqueles velhos vestidos, as fotos amarelecidas, os papeis manuscritos com tinta (quase) indelével, e queimá-los, acabar com eles. Depois, arejar o espaço, deixar entrar uns raios de sol e seleccionar novos objectos para povoar o coração.

Um minuto pára, impune, arrastando a imagem


A brisa corta o olhar fechado. Um minuto pára, impune, arrastando a imagem. Tudo adiado agora, e ainda por um instante. Além, na vastidão negra, todas as tintas se encontram, todas as gentes suspensas, todas as coisas arrumando o caos. Nesta existência fugaz da espera, só o sentimento perdura, só o silêncio indica a perfeição adiante, o sol cresce dentro a expandir a serenidade. Uma gota a cair sobre o branco confirma a hora e logo um ponteiro que se escapa, que avança. Leve, um dedo solta-se e faz de tanto mundo este toque. E tudo existe mais, a melodia que nasce, a certeza do belo, o som perfeito. E é uma paz que transborda. E é a vida toda aqui.
Obrigado Júlio :)

Incrivelmente

Fica teimosamente
mais um sopro,
um instante.

Embora vacilante
(os seus olhos já na aurora do amanhã,
o meio tronco fora do postigo,
perto de um novo arco-íris),
arrasta-se,
ainda,
mais um sopro,
um instante
e
fica.

Incompreensível
esta vontade de existir.

Vive o momento

Há um tempo que penso nisto. Nesta frase simples, tantas vezes proferida, “Vive o momento”. Bem sei que o conceito não é novo; já Horácio dizia “Carpe diem”, mas está mais vivo que nunca, veja-se os milhões que faz Eckhart Tolle na venda de livros e afins escritos com esta premissa como ideia base. Mas a verdade é que há coisas que se ouvem centenas de vezes e à centésima primeira nos parecem diferentes. Talvez seja este o caso. Só sei que há um tempo que penso nisto. “Vive o momento”.
Como consequência directa teremos o desvalorizar do Passado e do Futuro, e com isto o desaparecimento da dor e da desilusão, uma vez que eliminamos os velhos traumas e deixamos de projectar expectativas no futuro, podendo assim ser felizes com aquilo que o momento presente, o isto e agora, nos traz. Até aqui nada de complicado, a não ser que para isso teremos de desactivar aquilo que de mais inato temos, aquilo que nos define como seres humanos; a capacidade de nos projectar para além de nós. “Penso, logo existo”, seria desconsiderado e, quem sabe, mudado para “Sinto, logo existo”.
Desde que o homem se libertou da absorvente necessidade de se sustentar materialmente, aquando do nascimento das primeiras civilizações, as perguntas começaram a surgir. De onde venho? Para onde vou? Que existe para além de mim? E nestas perguntas está o desejo de conhecer não só um porquê, mas principalmente um para quê, uma finalidade, um sentido. O próprio conhecimento do porquê tem como objectivo final o para quê; queremos saber donde viemos para saber para onde vamos. Foi remetida, então, para Deus, a responsabilidade da resposta; Cícero definia filosofia como a “ciência das coisas divinas”. Deus seria, em si, a causa e a consequência. O princípio e o fim. A finalidade suprema. E é esta finalidade que, e embora possamos continuar a crer na sua existência, terá de desaparecer dos nossos pensamentos mais profundos. O porquê e o para quê terão de perder a sua posição dominante nos nossos espíritos. Isto é, no fundo, a libertação das amarras que se nos apresentam sob a forma de dúvidas, de questões, impressas em nós pelos filósofos da antiguidade.
É aqui que me debato, compreendo o desejável que seria viver sem pré-conceitos e sem decepções, mas não sei como fazer para parar de questionar, para parar de querer saber o que trás o amanhã, para não balizar nem classificar os acontecimentos. Para, e é mesmo disso que se trata, apenas viver. Se alguém tiver a receita, se é que a há, agradeço. Mesmo.
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