Não sei porquê

A verdade é que me apeteceu. E depois de me apetecer, fiz. Sempre acompanhada da mesma questão, sempre com a mesma dúvida, sempre a perguntar-me porquê?, e logo uma coisa qualquer, por detrás da cortina transparente da janela, e porque não? Seria uma voz, ainda que não se ouvisse? Não. Era, muito provavelmente, só uma coisa qualquer que não sabia o que dizia. Ainda assim, segui-a. Se é para ficar, para alimentá-lo todos os dias na tentativa de crer que algo válido, se é para o encher com reflexões que valham a pena, ainda não decidi. A verdade é que me apeteceu e fiz. Não sei porquê, nem porque não, mas curiosamente esse facto não é inquietante e, arrisco confessar, confere-me até uma sórdida liberdade. Veremos...
Por dulce surgy

Obrigada...

A verdade é que me apeteceu. E fiz. Só que a tal voz, aquela que ainda assim eu segui, tal como previra, não sabia o que dizia.
E afinal não é para ficar.
É isto, a sórdida liberdade de não saber porquê.

Este e este, penso eu, já têm razão de ser.

Casa

Tudo tem demasiado espaço.
Madeira onde ninguém passa, paredes vazias de contos.
Demasiado espaço...
O tempo é líquido e atrasa-se nessa enormidade vaga.
Nada mais há.

Desmeço

Que pequenez sente quem sente a pele a esvair,
quem vê em liquido ficar o corpo.

Deste local rente salta
o gigante topo do mínimo.

Hoje

Agora já não pesa.
O céu baixou até mim umas nuvens,
que me acolheram à porta do novo dia.
A água tocou-me a pele. Gelou-me.
Mas agora já não pesa.
Nas ruas desertas e nebulosas
deste Domingo de Novembro,
acordei livre e leve.

Inauguração no Braço de Prata - dia 5 / 11 às 19:30 h

AS MUTAÇÕES DA MEMÓRIA

FOTOGRAFIA DE NICA PAIXÃO E TEXTO DE DULCE SURGY

O projecto “As mutações da memória” nasceu da necessidade de explorar o conceito da característica multi-real da imagem.
Na verdade, já muito se disse sobre a multiplicidade de leituras praticáveis a partir da mesma fotografia; tantas quantos os que a vêem. Contudo, o nosso contributo no vincar desta perspectiva, pretende alargar-se do texto como suporte literário da imagem para a construção duma narrativa independente, uma das mil visões possíveis, a partir de uma série fotográfica, que não é, ela mesma, mais do que um conto sem palavras.
Tornou-se paradoxal este querer ir mais além na procura da ligação texto/fotografia, uma vez que ao dar à escritora, apenas a partir do tema da série conceptual e da sua visualização,a possibilidade de criar uma história totalmente livre da influência da fotógrafa, nascem dois espaços que, embora se enriqueçam na presença um do outro, são autónomos e valem por si só.
No fundo, não se tenciona que cada imagem seja compreendida pelo texto ou vice-versa, mas antes, deixar o espaço aberto para o nascimento de novas narrativas a partir do trabalho fotográfico, e mesmo, imaginar novas imagens no decorrer da leitura.
O tema central desta narrativa prende-se com a dualidade percepção individual/realidade.
As memórias que cada um traz da sua infância, vão sendo reconstruídas, mutadas à medida do passar dos anos e do adensar de experiências. Os nossos primeiros anos reinventam-se sob novas perspectivas, deixando de ser aquilo que na verdade foram, passando a percepções próprias e particulares.

Desejo

Ai,
Como queria ser um poema de Pessoa
Em que tudo é naturalmente
belo
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaasem esforço
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaacaído do fundo da alma
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaacomo uma folha solta no Outono
aaaaaaaaaaaaaaasem que se dê por isso,
aaaaaaaaaaaaaaatão natural é o seu estado maturo
aaaaaaaaaaaaaaaque nada espanta que se solte do tronco
aaaaaaaaaaaaaaae flutue vagarosamente até ao toque.

Mas olha-me
Vês
aaaaa imperfeição das vírgulas?
aaaaos ângulos rectos?
aaaaos conflitos?

Olha-me
Que vês?

Um puzzle inacabado, sem todas as letras.

aaaaQueria ser um poema de Pessoa como aquele que li hoje
aaaasimples,
aaaabelo,
aaaaperfeito,
aaaasimples,
aaaasimples.

Mas
Olha-me
Vês?


Tentativa
aaaaaaaaaErro
Tentativa
aaaaaaaaaErro

aaaaaaaaaaaaaaSuposição

aaaaaaaaaaaaaaApenas suposição

De súbito

O mais dentro em mim,
aquele bocado onde se esconde a verdade,
descobri-o há pouco. Semanas ou seria há minutos? Segundos.

Ia assim desacautelada, pontapeando despreocupadamente
uma pedrinha na calçada, assobiando baixinho acordes improvisados, e nisto
um murmúrio a fazer-se ouvir
devagar de início
ao longe
vago
como uma nascente cristalina perdida numa selva densa. E era isso mesmo,
um fio de água
discreto
dissipado entre rochedos e vegetação, a correr calmamente,
um fiozinho miúdo mas constante
a elevar-se só um pouquinho no ar antes de transbordar o meu chão.

Com os pés descalços, inundei-me dele,
desse mais dentro de mim,
desse bocado onde sou eu de verdade.

E é só aqui que quero ficar.

Duas artes

A literatura e a fotografia tocam pontos comuns.
Ambas são narrativas. Ambas tentam condensar
num espaço limitado aquela parte da realidade
que nos é importante.

Em inúmeros autores podemos observar
exemplos da junção dessas duas formas de expressão,
em que, nuns mais que outros, o texto acontece
lado a lado com a fotografia, um apoiando o outro.

O que gostei nesta imagem, mas eu sou suspeita,
é a necessidade da utilização das palavras
para a concepção da própria fotografia.
Na verdade, esta apoia-se na expressão escrita
para ser, para existir.



E é claro que eu fico feliz com isso...





Foto de : Carlos Muralhas

Tu

Apetece-me que subas as escadas naquele vagar de quem sabe que o mundo não se esgota.
Apetece-me a tua mão a tocar ao de leve na madeira da porta e logo eu a abri-la, o sorriso a convidar-te.
E os teus olhos cá dentro da pele, os órgãos que se iluminam, qualquer coisa que aquece.
Apetece-me sermos países vizinhos, profundamente soberanos; só as nossas fronteiras que se tocam, só uns rios em comum que nos atravessam.

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